Flores de Papel

Italo Kunzler
2 min readJun 11, 2019

Desculpem-me pelo discurso derrotista, mas, nós já perdemos, e como se não bastasse, nos perdemos em meio a tudo isso. Poderíamos nos apoiar em Benjamin e dizer que essa subida do fascismo se dá por uma derrota da esquerda, mas não, aqui quem foi derrotado fora o próprio humano.

Pois o fascismo que se fez emergir é o fascismo do homem comum. É, justamente, esse movimento que mata, pois, apesar de esse homem de bem, não “sujar” suas mãos com sangue, é ele que amola a faca, que a essa altura não é mais simbólica, e que viola hediondamente corpos como o meu, o seu e o nosso.

O tiro no rosto, as múltiplas facadas, as lâmpadas e barras de ferro que voam aos olhos encontram em seu aliado, o homem comum, o aporte e o apoio necessário para se legitimar. Esse cidadão corriqueiro vê diante seus olhos, o sangue presente na TV, nos jornais, nos chats, mas para ele, o sangue que jorra das notícias é o mesmo que escorre do bife malpassado que ele devora enquanto amola vagarosamente a sua faca de esquartejar, em seu parco horário de almoço.

Mata-se! A bala perdida, se perde sempre no mesmo lugar. Mata-se o negro, a mulher, a travesti, o índio. Mutila-se! Sem cara ou personalidade, os amoladores de faca podem ser encontrados nos discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, pastores, psicólogos e estão presentes em uma certa medida até em nós mesmos.

A escuridão já nos alcançou e a prova maior disso, é ver, no discurso de um presidenciável, a legitimação de tais atos. É fácil perceber isso, a terra já se tornou infértil e amorfa. O verde em nossos jardins já não é o mesmo.

Seria então o homem comum, o amolador de facas um genocida? Bom, eles retiram do ato de viver o caráter pleno de luta política e o da afirmação de modos singulares de existir. Eles entendem a ética como questão da polícia. Não acreditam em modos de viver e experienciar o corpo, porque professam o credo da vida como fardo ou dádiva. É por meio de tudo isso que variados e intensos assassinatos acontecem no cotidiano brasileiro. Morte biológica, social e cultural.

De fato, a penumbra já nos alcançou e flores já não existem mais. Então, que em nossos jardins possamos fazer, se necessário, fazer florir até mesmo flores de papel e, que em meio ao breu possamos fazer lampejar como vagalumes, que com sua iluminação profana resistem à escuridão.

(Texto -inspirado em Baptista, A cidade dos sábios- que apresentei no dia 22/10/2018 em uma mesa redonda denominada “Democracia e Direitos em Risco” realizada na UFRR à convite da UNE, CAPSi, CACS e CAHIST)

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Italo Kunzler

Um jardineiro de flores de papel em terras de Makunaima e, em meio a tudo isso, asmático. Boa Vista-Roraima-Brasil